Acerca de Cal, de Carvão e do Óbvio
Crónicas Avulsas – Henrique Bonança
Acerca de Cal, de Carvão e do Óbvio
OPINIÃO
Durante muitos anos, ao entrar em Ayamonte, passando pela Barriada De Las Angústias, numa parede caiada de branco, a encimar um portão metálico pintado de verde, recordo ler uma frase escrita a tinta preta: “ Vende-se carvão negro e cal branca”.
O carvão, por muitas voltas que se dê, é negro. Não conheço carvão de outra cor. Quanto à cal, sabemos que ela é branca. Podemos obter outras cores com que no Algarve e Alentejo tradicionalmente caiamos as nossas casas, adicionando pigmentos que por norma são de cores garridas, para contrastar com o branco das paredes.
Portanto, a frase escrita a negro na parede branca, parece-nos de tal forma óbvia que suscita um sorriso e, associamo-la a alguém de espírito brincalhão!
Contudo, sabe-se que conseguir “cozer” pedra calcária, tendo como objectivo obter cal branca é uma proeza e uma arte quase perdida, que passa pela disposição dentro do forno das pedras em espiral, assim como do tempo de cozedura adequado.
Caso não se dominem esses saberes e não se assumam cuidados apropriados, a cal obtida poderá ser escura, perdendo-se o branco imaculado que permite proteger as paredes e manter o isolamento térmico das casas!
É inusitada a frequência com que a comunicação social divulga casos de buscas a sedes de partidos, gabinetes de responsáveis políticos, escritórios de algumas personalidades, câmaras municipais e algumas empresas tuteladas pelo estado; na sequência dessas movimentações das autoridades, por norma com grande alarido e exposição mediática, partidos políticos e aqueles que os servem ou de que alguns se servem, distribuídos pelas diferentes bancadas do parlamento, em autarquias, em cargos no governo de turno ou, ainda, nalguma oposição seja ela qual for, manifestam grande incómodo;
Molestados sentir-se-ão também brilhantes empresários empreendedores, alguns deles aparentando serem beneficiários de autênticas redes de obscuros interesses, famosos gestores de grandes empresas, estes com estatuto de cintilantes estrelas pagos de forma principesca para não dizer pornográfica, gestores de instituições do estado aonde se acoitam militantes e simpatizantes de diferentes sensibilidades políticas e interesses comuns, como se sentissem o bafo, quente e húmido, da justiça e dos procuradores do ministério público – aqueles que numa base de separação de poderes, defendem o estado de direito – independentemente da sua matiz política, reagem de forma corporativa, numa sintonia inesperada, muitas vezes assumindo uma curiosa indignação de virgens ofendidas, na vã tentativa de afastar eventuais vis suspeitas.
Por norma, a defesa imediata desta casta de oportunistas baseia-se na afirmação de que são só arguidos, não são acusados, logo, tendo em conta essa condição, têm todo o direito ao princípio da presunção de inocência!
Nesta fase, habitualmente com a colaboração de alguns órgãos de comunicação e comentadores amigos, vale tudo para descredibilizar a investigação e respectivos investigadores, aproveitando aparente excesso de garantias concedidas aos eventuais suspeitos de prevaricação!
Não por acaso, todos nós cidadãos percepcionamos uma justiça injusta, onde a sensação de impunidade está instalada e alicerçada em raízes muito profundas: fala-se em justiça para ricos e poderosos e uma outra para os pobres!
Quando a “coisa” aquece, a riqueza e recursos entretanto acumulados através de práticas de licitude questionável, permite a contratação da nata dos advogados especialistas, conseguindo sucessivos adiamentos e prorrogação de prazos permissivos, até que os mesmos prescrevam ou que todos os envolvidos morram de velhos, sem que a justiça seja feita.
A falta de princípios e de vergonha grassa despudoradamente: nem sequer têm a dignidade de se demitir!
A perversão do óbvio, práticas e decisões contrárias àquilo que é esperado, é concretizada por alguns políticos arrivistas, bem falantes, sem a experiência da vida, incompetentes, egocêntricos, vaidosos e ambiciosos, generalizando e estigmatizando por efeito de contágio todos aqueles dotados de valores morais e éticos sólidos que se dedicam convictamente à causa pública e à luta pelo bem comum.
Isto, por que nem todos são criminosos mafiosos!
Os que trepam no aparelho partidário, não poucas vezes através de verdadeiras golpadas e negociatas entre as diferentes fações internas, ao chegarem ao poder, ao contrário de servir o bem comum, servem-se a eles próprios, aos seus correligionários, aos seus familiares, pervertendo, pela forma como exercem mandatos, o espírito do sistema democrático através do qual conseguiram ser eleitos, pondo-o em perigo!
Esta triste realidade, para além de corroer a nossa frágil democracia, permite que cavalgando a onda do descontentamento generalizado, surjam forças políticas contrárias ao regime de liberdade pelo qual tantos lutaram e alguns morreram.
Afinal, o algodão engana: apesar do que se vê e julga, nem toda a cal é branca, pura e imaculada!
Henrique Bonança
Quinta do Sobral, 5 de Julho de 2024
PS – Esta é uma crónica diferente das outras, todavia, perante a sucessão e a vulgarização de casos que envolvem gestores, empresários e responsáveis políticos, decidi escrever acerca do tema e do “…estado a que isto chegou!”, tal como disse o capitão Salgueiro Maia aos soldados, antes de partirem em coluna para o Carmo, na parada do quartel onde eu prestei ao país o serviço militar obrigatório: a Escola Prática de Cavalaria em Santarém.